Falando sobre tudo

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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Poesias Clarice Lispector






Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos.
Um coração à moda antiga.
Um coração moleque
que insiste em pregar peças no seu usuário.
Rifa-se um coração
que na realidade está um pouco usado, meio  calejado,
muito machucado e que teima em alimentar sonhos
e cultivar ilusões.
Um pouco inconseqüente
que nunca desiste de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração
que acha que Tim Maia estava certo quando
escreveu...
"...não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso que eu
espero...".
Um idealista...
Um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende.
Que não endurece, e mantém sempre viva a esperança de ser feliz,
sendo simples e natural.
Um coração insensato
que comanda o racional
sendo louco o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida
que vive procurando relações e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração
que insiste em cometer sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra, briga, se expõe.
Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões.
Sai do sério e, às vezes revê suas posições
arrependido de palavras e gestos.
Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional
que abre sorrisos tão largos
que quase dá pra engolir as orelhas,
mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto.
Um coração para ser alugado,
ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado
indicado apenas para quem quer viver intensamente
contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida
matando o tempo,
defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração
tão inocente que se mostra sem armaduras
e deixa louco o seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro
na hora da prestação de contas:
"O Senhor pode conferir.
Eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal
quando ouvi este louco coração de criança
que insiste em não endurecer
e se recusa a envelhecer"
Rifa-se um coração,
ou mesmo troca-se por outro
que tenha um pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga.
Um coração que não seja tão inconseqüente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda não foi adotado, provavelmente, por se recusar
a cultivar ares selvagens ou racionais,
por não querer perder o estilo.
Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento
até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos
que mesmo estando fora do mercado,
faz questão de não se modernizar,
 mas vez por outra, constrange o corpo que o domina.
Um velho coração
que convence seu usuário a publicar seus segredos
e a ter a
petulância de se aventurar como poeta

Clarice Lispector

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